ENTREVISTA
7/11/2009
Não duvide do que ela é capaz
José Rabelo
Foto capa: Ricardo Medeiros
Fotos: Ricardo Medeiros
A reportagem especial publicada nesta edição revela os bastidores do episódio que envolveu o ex-delegado Cláudio Guerra e mais 14 policiais que se estiveram cara-a-cara com a morte na Penitenciária de Segurança Máxima I (Viana), onde cerca de 500 detentos estavam prestes a invadir a ala do “seguro” para assassiná-los. De carona no julgamento do pedido de habeas corpus concedido aos 15 detentos - que foram transferidos para o Instituto de Readaptação Social (IRS), de Vila Velha, para que suas vidas fossem resguardadas – apareceu uma série de denúncias que ratificam as arbitrariedades que ocorrem no sistema prisional capixaba e que já estão se tornando triviais.
A reportagem especial publicada nesta edição revela os bastidores do episódio que envolveu o ex-delegado Cláudio Guerra e mais 14 policiais que se estiveram cara-a-cara com a morte na Penitenciária de Segurança Máxima I (Viana), onde cerca de 500 detentos estavam prestes a invadir a ala do “seguro” para assassiná-los. De carona no julgamento do pedido de habeas corpus concedido aos 15 detentos - que foram transferidos para o Instituto de Readaptação Social (IRS), de Vila Velha, para que suas vidas fossem resguardadas – apareceu uma série de denúncias que ratificam as arbitrariedades que ocorrem no sistema prisional capixaba e que já estão se tornando triviais.
Boa parte dessas denúncias foi levada ao conhecimento do desembargador Pedro Valls Feu Rosa pela Associação de Mães e Familiares de Vítimas de Violência (Amafavv). Em reconhecimento à coragem demonstrada pelas militantes da Associação, que não pensaram duas vezes para tornar público os casos de tortura, corrupção e prevaricação que corrompem o sistema carcerário, o desembargador, antes de ler o seu voto no julgamento do habeas corpus em favor dos 15 ex-policiais, prestou reverência ao trabalho desenvolvido pela Amafavv. “Essas pessoas humildes, em sua maioria, têm tido, muitas vezes, a coragem que falta às nossas instituições”, ressaltou Feu Rosa.
Se as militantes da Amafavv se sentiram lisonjeadas com a justa homenagem prestada pelo desembargador, uma delas, em especial, se sentiu duplamente recompensada. Para Maria das Graças Nascimento Nacort, presidente da Amafavv, as palavras de reconhecimento servem como combustível para ela prosseguir na sua luta que começou com a morte de seu filho, Pedro Nacort – executado com 22 tiros no Centro de Vitória no dia 22/06/1999. “Faz exatamente dez anos e quatro meses que estou tentando provar que meu filho foi covardemente assassinado por quatro policiais militares. As palavras de incentivo servem para mostrar que estamos no rumo certo”.
O calvário que Maria das Graças foi obrigado a percorrer em busca de justiça deixou um rastro de inimigos pelo caminho, principalmente entre os policiais, que se tornaram seus algozes eternos. Curiosamente, a mãe que grita aos quatro cantos que seu filho foi executado por policiais, elevou o espírito para corroborar com as denúncias que beneficiaram os 15 ex-policiais que estavam à beira da morte na Penitenciária de Viana. “Como em qualquer profissão, existem bons e maus policiais. Os que mataram meu filho fazem parte da banda podre da polícia, mas sei que dentro da corporação também tem gente séria. No caso dos ex-policiais que estavam presos em Viana, acho que eles erraram e estão pagando pelos seus crimes. Se trabalho em defesa dos direitos humanos, não posso concordar, independentemente de ser ex-policial ou não, que detentos sejam chacinados dentro das penitenciárias enquanto cumprem suas penas. Minha luta é por justiça, não por vingança”.
Maria das Graças explica que a Amafavv foi registrada oficialmente em 2001, mas o trabalho em defesa das vítimas da violência já vinha sendo feito bem antes. “Na verdade, o trabalho começou com a morte do meu filho, em 1999. Hoje a Amafavv tem até uma sede própria. Humilde, mas temos”.
Uma sala acanhada no décimo quinto andar do Edifício Martinho de Freitas, na avenida Princesa Isabel, no Centro de Vitória, abriga a sede da Associação. A modesta instalação revela que a saúde financeira da OSCIP (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público) não vai muito bem das pernas. Orgulhosa pelas conquistas que traz no currículo em defesa da causa, Maria das Graças aproveita o dia ensolarado que invade as janelas do QG da Amafavv para exibir alguns álbuns de fotografias “com gente importante” que já teve a honra de conhecer.
“Semana passada, que só chovia e estava escuro até de dia, ficaria difícil para você ver essas fotos. Como você deve ter percebido, estamos sem energia. Não faltou energia não, cortaram a luz por falta de pagamento mesmo. A situação aqui tá brava. Pode escrever isso ai”.
Segundo Maria das Graças, as despesas mensais da organização giram em torno de R$ 1,2 mil. Ela explica que R$ 600 são gastos só com aluguel e condomínio. Essa despesa está sendo paga por um grupo de amigos, que ele prefere não revelar os nomes. “São pessoas que querem ajudar, mas não querem aparecer”. A outra metade do dinheiro vem do próprio bolso da presidente, que ganha dois salários mínimos de pensão de um ex-companheiro que morreu há muitos anos. “Vou me virando do jeito que posso. Hoje é a luz que está vencida, amanhã é o telefone e assim por diante. O importante é não parar o trabalho”.
Ela explica que a Amafavv tem atualmente mais de duas mil pessoas associadas, entre mães, pais, mulheres, irmãos, irmãs e familiares em geral. “A maioria dos associados é mulher, mas a cada dia aparecem mais homens. Não posso fechar as portas. Se fizesse isso, deixaria muita gente na mão”.
A sala coberta por um piso de tacos opacos, já desgastados pela ação do tempo, abriga uma geladeira marrom, um computador dos anos 90 e mesas e armários de segunda mão, todos com cara de móveis doados. O espaço funciona também como depósito para guardar os materiais das campanhas promovidas pela Associação. O material se restringe a cruzes, cartazes e banner. Um deles, difícil de encarar (com quase três metros de altura e com pelo menos dois de largura), traz, em detalhes, os corpos de dois detentos que foram esquartejados na Casa de Custódia de Viana (Cascuvi). Um dos corpos, com a autorização dos familiares, foi usado em um protesto, organizado pela Amafavv, que percorreu as principais ruas do Centro de Vitória. “Aquele dia foi um alvoroço danado. Todo mundo queria ver e fotografar o corpo mutilado. As pessoas ouvem falar ou acompanham nos jornais, mas não imaginam que a violência chegue a esse ponto. As cenas são fortes, mas às vezes precisamos chocar as pessoas. O desembargador Feu Rosa, por exemplo, ficou chocado quando viu as imagens. Ele também não imaginava que barbaridade tamanha acontecesse dentro dos presídios”.
A presidente-fundadora da Associação fez questão de ressaltar que todas as denúncias apresentadas pela Amafavv estão fundamentadas em provas. “Nunca fazemos denúncias que não conseguimos provar. Todas essas denúncias que levamos para o desembargador Feu Rosa foram baseadas em provas, tanto é que ele só mandou investigar porque viu que as informações são sérias. Está tudo documentado num CD. Nesse trabalho é preciso ser persistente e corajosa. Você sabia que quem levou as denúncias para o senhor Sérgio Salomão Shecaira fui eu?”
A militante explica que foi chamada para participar de um programa na TV Record, em São Paulo. O programa reuniu familiares de vítimas da violência. “Contei a história da execução do meu filho e a batalha que estou enfrentando há mais de dez anos para incriminar os policiais culpados pelo assassinato. Falei também sobre as violações nos presídios. O doutor Shicaira ficou sabendo do caso e pediu para que eu fosse para Brasília falar sobre o assunto. Acho que isso foi em março deste ano. O Bruno [Alves de Souza, presidente do Conselho de Direitos Humanos do Estado] foi até junto comigo, mas quem denunciou os casos de violações de direitos nas prisões do Espírito Santo fui eu. É bom deixar isso bem claro”.
Logo depois das denúncias de Maria das Graças, o então presidente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), Sérgio Salomão Shecaira, esteve em abril no Estado para averiguar as denúncias de violações dos diretos humanos nos cárceres capixabas. Após o relatório de Shecaira desvelar a situação das masmorras capixabas, estiveram no Estado, em junho, dois juízes do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que também ratificaram os relatos de Shecaira. Na segunda quinzena de outubro, foi a vez de uma comissão especial formada pelos membros do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH) fazer mais um relatório reforçando as denúncias anteriores e cobrando do procurador-geral da República um parecer sobre o pedido de intervenção no Estado solicitado, em abril, por Shecaira.
Na última quinta-feira (5), a Justiça Global e Conectas vistoriaram a Unidade de Internação Socioeducativa (Unis), o Departamento de Polícia Judiciária (DPJ) de Vila Velha e Presídio Feminino de Tucum. As organizações sociais têm a prerrogativa de levar as denúncias dos flagrantes de violações dos direitos humanos para a Organização dos Estados Americanos (OEA).
Vitória sem precedentes
No geral, as militantes da Amafavv acreditam que as denúncias sistemáticas têm sido o meio mais eficaz para enfrentar as situações de violações que ocorrem hoje no Estado. Mesmo com os cofres vazios e a falta de estrutura, elas acreditam que Amafavv está cumprindo a sua missão.
Dentro dessa história de luta da Amafavv que, na medida do possível, vem desenvolvendo ações bem-sucedidas, Maria das Graças Nacort carrega consigo uma batalha muito particular, que esteve perto do seu final no último dia 29 de maio, data em que o juiz anunciou se os policiais acusados de assassinar Pedro Nacort eram culpados ou inocentes. Para desespero de Maria das Graças, o mês de maio – que reserva uma data especial para homenagear as mães – foi cruel com a militante. O júri popular, depois de dois dias de julgamento, entendeu que não havia provas suficientes para incriminar os policiais.
“Olha, você não imagina. Aquilo foi um golpe muito duro para mim e para todas as pessoas que me apoiaram nesses anos todos. Tínhamos plena certeza de que as provas eram tão claras... Eu já podia ver os policiais Erivelton de Souza Pereira (Diabo Loiro) e Jeferson Torezani saindo do fórum algemados”, recorda. “Durante dez anos eu sonhei com essa imagem. Na hora acontece tudo ao contrário. Não dá para explicar. A decepção é muito grande”, diz enxugando as lágrimas dos olhos.
Os laudos da balística apontavam que os projéteis disparados contra o jovem Pedro Nacort, de apenas 22 anos, partiram da pistola de propriedade do policial Erivelton. Maria das Graças recorda que, embora a pressão dos policiais durante o julgamento fosse muito grande, estava confiante nas provas, que não deixavam, segundo ela, margem para dúvidas. “Mesmo com a pressão, fiquei mais segura quando percebi que cinco dos sete jurados eram mulheres. Pensei, elas devem ser mães e vão se sensibilizar com o meu drama”
Porém, Maria das Graças estava enganada. Quando o juiz proferiu solenemente que os policiais estavam absolvidos, a mãe de Pedro Nacort entrou em choque. Amparada por amigos e familiares, iniciou na mesma hora uma greve de fome de protesto em frente ao Tribunal de Justiça. A greve de fome foi interrompida 24 horas depois de iniciada. “O doutor Fernando Zardini me disse que não precisava nada daquilo. Prometeu que iria me ajudar. Ele me garantiu que entraríamos com um pedido para anular o júri e convocar um novo processo”.
O que parecia impossível aconteceu. No último dia 21, a Primeira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado (TJES) anulou a absolvição dos policiais militares acusados de matar Pedro Nacort. O desembargador José Luiz Barreto Vivas, relator do processo, votou pela anulação do julgamento. De acordo com o relator, as provas encontradas ainda apontavam dúvidas quanto à autoria do crime. A presença maciça de policiais militares fardados durante o julgamento também foi um dos pontos abordados durante a relatoria.
“O doutor Zardini me disse que um novo julgamento deve ser marcado até a primeira quinzena de março do ano que vem. Estou muito confiante de que, desta vez, a justiça será feita.”
Enquanto aguardar o desfecho da luta mais importante da sua vida, Maria das Graças segue pelejando em outras batalhas paralelas que também exigem muito suor da capixaba de Guarapari.
Aos 60 anos, Maria das Graças mora num pequeno apartamento alugado no Centro de Vitória junto com duas irmãs e uma filha. Ao todo, ela foi mãe de cinco filhos, três mulheres e dois homens. “Às vezes fico cansada porque minha barra é muito pesada. Durante a gravidez dessa filha que mora comigo tive rubéola. A doença deixou algumas sequelas na minha filha, que hoje está com 40 anos. Ela quase não sai de casa por causa dos problemas. Uma das minhas irmãs tem problemas mentais e a outra sofre de enfisema pulmonar e já está desenganada pelos médicos. A vida tem sido dura comigo. Se não fosse esse trabalho para me renovar as energias acho que já teria morrido. Hoje quero ter cada vez mais força para viver: primeiro para ver a justiça sendo feita no caso do meu filho e depois para ajudar as outras pessoas que agora depositam em mim a mesma esperança que carrego até hoje no caso do Pedrinho”.
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